Feminicídio: É preciso um basta nesta tragédia cotidiana
Mais dois feminicídios ocorreram nesta quinta-feira (3/3), no DF, totalizando oito casos este ano. Letícia Barbosa Mariano, 25 anos, foi espancada até a morte pelo namorado e Rayane Ferreira de Jesus, 18, foi estrangulada pelo companheiro.
(crédito: Arquivo pessoal)
Em uma madrugada, o Distrito Federal registrou mais dois feminicídios, chegando ao total de oito, desde janeiro. Letícia Barbosa Mariano, 25 anos, e Rayane Ferreira de Jesus, 18, viviam em relacionamentos conturbados, foram agredidas fisicamente e registraram queixa na delegacia. Ambas foram mortas nesta quinta-feira (2/3). Os assassinos, identificados como Guilherme Nascimento, 29, e Jobervan Junior Lopes, 21, respectivamente, acumulam antecedentes por violarem a Lei Maria da Penha. Os dois fugiram e foram presos horas depois pela Polícia Civil (PCDF).
Letícia e Guilherme se conheceram há pouco mais de sete meses. Os dois haviam sido presos anteriormente e prestavam serviço comunitário na Secretaria de Educação, quando iniciaram o relacionamento. Em pouco tempo de namoro, Guilherme não exitou em revelar a personalidade obsessiva e o ciúme doentio. “Cerca de duas vezes na semana, a vítima ia para a casa dele (em Taguatinga Norte), mas logo começaram os registros de agressões”, afirmou o delegado-chefe da 17ª Delegacia de Polícia, Mauro Aguiar.
Durante a relação, Letícia foi agredida ao menos nove vezes pelo namorado. Em uma delas, foi espancada e teve a mão perfurada por uma faca em Águas Lindas de Goiás, mas evitou denunciar o fato à polícia. De todas as agressões, em apenas três ela buscou ajuda. De acordo com o delegado, havia uma dependência emocional por parte da vítima para com o companheiro. “É uma situação lamentável, porque as agressões eram muito graves. Ele tinha uma crise de ciúmes obsessiva, o que, com certeza, não era amor”, frisou.
Crime brutal
Na madrugada de ontem. o casal estava no apartamento dele, um imóvel pequeno, no Setor de Indústria Gráfica de Taguatinga Norte. Em depoimento, o agressor disse que assassinou a namorada por “tudo que ela havia feito a ele” (…) Houve uma discussão por ciúmes. Em outras situações, o autor exigia olhar o celular da vítima e dava início a uma briga”, disse o delegado.
Letícia pediu medida protetiva contra Guilherme, no ano passado. O pedido foi deferido pela Justiça, mas isso não impediu novos episódios de violência. Em setembro de 2022, Guilherme foi até a rua da vítima, em Ceilândia Norte, e gritou, em frente à casa dela: “Desgraça, desgraça. Eu quero ver o seu Instagram”. Logo em seguida, o homem teria puxado o cabelo da jovem e jogado uma bicicleta em direção a ela.
Guilherme teria afirmado ainda que mataria Letícia porque a roupa dela estava muito curta. Nervoso, o agressor pressionou a namorada contra o muro de um comércio local e exigiu que ela colocasse a senha do Instagram. “Põe a senha do Instagram, senão eu te bato”, ameaçou, conforme o boletim de ocorrência registrado na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher II (Ceilândia).
Antes do assassinato, o casal consumiu drogas e álcool no apartamento dele. Segundo o investigador, Guilherme levou a mulher até o banheiro e deu início a uma sessão de espancamento — com chutes e socos — e bateu a cabeça da vítima contra uma estrutura do cômodo. Ele usou ainda uma chave extratora de remoção de chip de celular (assessório comparável a uma agulha) para furar o pescoço da vítima várias vezes. Vizinhos de Guilherme notaram que havia algo de errado e acionaram a polícia. De acordo com o delegado, Guilherme ligou para o pai e confessou o crime, mas quando as equipes chegaram ao endereço, havia fugido.
Em poucas horas, os policiais civis da 17ª DP, após diligências e coleta de depoimentos, conseguiram capturar Guilherme, em Ceilândia. Ele estava escondido em uma suíte do Hotel 1001 Noites. Na delegacia, confessou o crime e alegou que, quando saísse da cadeia, mataria o suposto “ficante” de Letícia. Guilherme continua preso e foi indiciado por homicídio qualificado pelo feminicídio.
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Covardia
No Caub, Riacho Fundo 2, Rayane Ferreira de Jesus, 18, foi estrangulada pelo companheiro, Jobervan Junior Lopes, 21. Em seguida, o autor do crime fugiu com o filho do casal, de apenas um ano. A criança foi encontrada pela Polícia Civil na casa do avô paterno, horas após o assassinato. Depois do crime, ele ligou para a tia avisando que tinha tirado a vida da jovem.
De acordo com o delegado-adjunto da 29ª DP (Riacho Fundo), Lúcio Valente, depois do feminicídio, Jobervan foi flagrado por câmeras de segurança com a criança no colo. O assassino foi preso horas depois, na região do P Sul, em Ceilândia. “Ele alegou (na delegacia) que ela o mandou ir embora de madrugada, e que iniciaram uma discussão. Nisso, ele a estrangulou”, revelou o delegado.
Jobervan não tinha ocupação formal, é usuário de drogas e tem várias passagens pela polícia, incluindo uma denúncia de violência contra mulher, que ocorreu em 2021, no Paranoá. Na ocasião, ele ameaçou e agrediu uma ex-namorada, com quem manteve uma relação de três anos. Ela se separou dele no início de novembro do ano passado, em decorrência da agressividade do ex-companheiro. Jobervan a ameaçava constantemente, segundo a mãe da vítima, Marilene Ferreira, dizendo que ia levar o filho do casal.
Violência avança
Além das duas vítimas mortas, houve também uma tentativa de feminicídio, na QN 15, do Riacho Fundo II. Dioney de Andrade Miguel Cruz, 32, tentou atropelar a ex-mulher, Valeriana Soares de Araújo, 30, na madrugada de ontem. Segundo a vítima, o autor jogou o carro contra ela, imprensando-a contra o portão da casa. Valeriana foi levada pelo Corpo de Bombeiros (CBMDF) ao Hospital Regional de Ceilândia (HRC). Ela terá que passar por uma cirurgia por ter fraturado o fêmur. O agressor foi localizado e preso em Luziânia (GO), pela equipe da 29ª DP.
O número de mulheres assassinadas em pouco mais de dois meses este ano assusta especialistas e a população em geral. Dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) mostram que, em 2022, entre janeiro e março, foram contabilizados três feminicídios, o que significa um aumento de 150% nos casos, se comparado ao mesmo período de 2023. Os anos de 2020 e 2021 também ficam abaixo.
Mariana Nery, advogada especialista em direito da mulher e gênero, opina sobre as mudanças consideradas necessárias para reduzir o número de feminicídios no DF. “É a aplicação da lei. Se a polícia, o Judiciário e as políticas públicas de proteção à vítima, como a Casa da Mulher Brasileira, funcionassem, os números de feminicídio seriam bem menores. A vítima tem medo de denunciar por vários motivos. Desde dependência financeira até medo de perder os filhos e de ser agredida ou morta. Outra razão pode ser a falta de conhecimento, pois a denúncia só pode ser realizada dentro do prazo de seis meses. Muitas mulheres não sabem disso e acreditam que podem denunciar em qualquer momento”, analisa a especialista.
Três perguntas para Giselle Ferreira, secretária da Mulher
O mês da mulher começa com dois feminicídios e uma tentativa de feminicídio. Este ano, oito mulheres foram assassinadas em razão de gênero. Como vamos mudar esse cenário?
Para nós, mulheres, está machucando tanto! Ainda mais no mês das mulheres, quando falamos da importância da valorização da mulher. Desde que chegamos na pasta, estamos trabalhando com a filosofia de que não aceitaremos nenhuma mulher a menos. Este ano, está atípico. Não é uma mulher. É uma família, uma mãe, os órfãos. Vamos enfrentar de forma integrada e a força-tarefa criada pela governadora em exercício (Celina Leão) é para isso.
O que já caminhou desta força-tarefa de enfrentamento ao feminicídio?
Estamos esperando o relatório final para adotar as medidas. Mas já temos ações frutos desse grupo. No carnaval, fizemos campanha maciça de respeito ao próximo e não tivemos nenhum registro de assédio sexual. Além disso, a Secretaria de Educação está capacitando os gestores dentro do projeto Lei Maria da Penha na Escola. Isso incentiva o cuidado em rede, para que o gestor oriente e apoie as famílias sobre como e onde buscar ajuda. A gente precisa trabalhar esse tema com os jovens porque precisamos formar um novo cidadão, que respeite o próximo e a mulher. Também precisamos divulgar as várias formas de violência: a psicológica, a financeira, a sexual, a física. As pessoas precisam entender que um xingamento é uma violência doméstica; o empurrão, pedir a senha do cartão, reclamar da roupa são formas de violência doméstica.
De que forma o governo fará essas informações se tornarem de domínio público?
O GDF vai lançar, este mês, uma campanha institucional contra o feminicídio. A meta é chamar a atenção de toda a sociedade, não só das mulheres, para a importância da denúncia. Sabemos de casos de mulheres que denunciaram e morreram. Mas quem pede ajuda está muito mais protegida, e as estatísticas nos mostram isso: foram 16 mil ocorrências de violência doméstica para 22 feminicídios, no ano passado. São dados alarmantes. Mas vamos enfrentar essa realidade na perspectiva de nenhuma mulher a menos.
Quem são as vítimas de feminicídio em 2023 no DF
Fernanda Letícia da Silva, 27 anos
1º de janeiro, em Ceilândia
Mirian Nunes, 26 anos
2 de janeiro, em Ceilândia
Jeane Sena Santos, 42 anos
17 de janeiro, no Park Way
Giovana Camilly Carvalho, 20 anos
18 de janeiro, em Ceilândia
Izabel Guimarães, 36 anps
4 de fevereiro, em Ceilândia
Simone Sampaio, 40 anos
13 de fevereiro, no Gama
Letícia Barbosa Mariano, 25 anos
2 de março, em Taguatinga Norte
Rayane Ferreira, 18 anos
2 de março, no Riacho Fundo
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