Major da PMDF que espancou esposa escreveu artigo sobre violência doméstica

Texto foi veiculado na biblioteca virtual do Ministério da Justiça, em 2016. Sete anos depois, o militar foi preso por agredir a companheira

Jéssica Ribeiro

“Na atualidade, apesar da instituição da Lei Maria da Penha e da qualificadora do feminicídio, os casos de violências contra as mulheres continuam acontecendo”. O trecho, escrito por Eduardo Ferreira Coelho, 42 anos, major da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), faz parte de um artigo publicado por ele, e por outros dois PMs, na biblioteca digital do Ministério da Justiça, em 2016. Hoje, sete anos após a veiculação do material, o policial responde por agredir, injuriar, ameaçar e cuspir na própria esposa, dentro da casa onde morava o casal, em Ceilândia.

A publicação, à época, surgiu após o Fórum Brasileiro de Segurança Pública produzir um estudo cujo resultado indicou que as organizações policiais não possuem preparo para lidar com as questões e ocorrências relacionadas à violência sexual cometida contra mulheres.

Após uma análise dos militares quanto a percepção da PMDF sobre o atendimento a essas vítimas, os autores do artigo concluíram que “as ações de prevenção e atendimento dos casos de violência contra a mulher requerem a estruturação de uma rede cuja atuação não seja seletiva, discricionária e que seja passível de responsabilização”.

Em 18 de março de 2023, contrariando os próprios argumentos, Eduardo foi preso em flagrante pela Delegacia Especial de Atendimento à Mulher II (Deam) após espancar a companheira. Na data, e sabendo que a esposa estaria se recuperando de uma cirurgia na coluna, o policial sentou no quadril dela e passou a agredir a mulher, bem como a cuspir em seu rosto.

A vítima chegou a gritar pedindo para ele cessar as agressões, mas Eduardo passou a pular sobre a coluna da mulher “provocando muito mais dor”.

Manifestação a favor dos direitos LGBTQIA+ - Metrópoles

No início de abril de 2022, no entanto, o STJ concedeu, por unanimidade, medidas protetivas por meio da Lei Maria da Penha para uma mulher transexual. Por ser a primeira vez que uma decisão nesse sentido foi tomada por um tribunal superior, a determinação poderá servir de base para que outros processos na Justiça utilizem o mesmo entendimentoLuis Soto/SOPA Images/LightRocket via Getty Images

O nome da lei homenageia Maria da Penha, mulher que sofreu tentativa de feminicídio, em 1983, que a deixou paraplégica. O caso ganhou repercussão internacional e foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA)Paulo H. Carvalho/Agência Brasil

Homem em frente a mulher com os punhos cerrados como se fosse agredi-la- Metrópoles

O ataque foi presenciado pela filha do casal, de 2 anos. Enquanto a criança tentava entender o que estava acontecendo, o PM teria dito a ela que a esposa “havia feito algo muito feio” e que “mulher que faz coisa feia merece apanhar”. Ao mesmo tempo que falava com a bebê, o major continuava as agressões contra a companheira.

Em certo momento, segundo o documento ao qual o Metrópoles teve acesso, o policial teria ameaçado matar a companheira, bem como o filho e o ex-marido dela. O homem teria, também, tentado quebrar os dedos da mão da esposa. Por conta da dor, a mulher passou a gritar desesperadamente, e, para conter o barulho, Eduardo pressionou um travesseiro contra o rosto dela, a sufocando.

A denúncia

A confusão começou após o militar se desentender com a esposa, por ela ter enviado uma mensagem para o ex-marido – pai do primogênito dela, de 9 anos, – agradecendo um celular que ele teria dado ao filho. Irritado, Eduardo passou a espancar a mulher.

Para dar fim às agressões, a vítima pedia “perdão e dizia que não denunciaria” o major. Nesse momento, o homem pegou o celular da esposa e a obrigou a mandar uma mensagem ao ex-companheiro, o chamando de “corno” e declarando que o presente [o aparelho celular da criança], na verdade, teria “sido pago por Eduardo”, uma vez que o militar “pagava todas as despesas do menino”.

Conforme o relato, após o envio do texto, o policial “parou de bater na esposa, tomou o celular dela e foi ao banheiro”. Aproveitando o momento, a mulher pegou a filha, entrou em um carro e dirigiu-se à Delegacia da Mulher.

Na unidade policial, a vítima relatou o que teria acontecido, fez exame de corpo de delito, e pediu que o ex-marido encaminha-se às autoridades as mensagens enviadas do aparelho dela para o dele.

Após a denúncia, Eduardo foi preso e levado à delegacia, onde negou as agressões e disse que a mulher se autoagrediu. Segundo ele, a confusão teve início por conta de ciúme. Ele confessou ter exigido que a mulher gravasse mensagem chamando o ex-marido de “corno”.

O policial contou, ainda, que na casa onde mora o casal há câmeras de segurança, porém, elas “não estavam gravando no momento” em que a violência ocorreu.

Ao Metrópoles a defesa de Eduardo Ferreira Coelho disse que não se manifestará sobre o ocorrido “em respeito aos direitos fundamentais dos envolvidos”. A vítima também foi procurada pela reportagem, mas, por medo, não quis comentar o caso.

Solto na audiência de custódia

Eduardo Ferreira passou por audiência de custódia em 19 de março. Na ocasião, recebeu liberdade provisória, sem fiança. A juíza Acácia Regina Soares de Sá afirmou, na sentença, que o caso não tem “exacerbada gravidade”. “Não há nos autos elementos que demonstrem exacerbada gravidade da conduta a ponto de justificar a manutenção da segregação cautelar do autuado, uma vez que necessita ser melhor instruído no juízo de origem em especial pela capitulação realizada pela delegacia”, declarou a magistrada.

“Entretanto, o caso é, sim, de fixação de medidas cautelares diversas da prisão. Além de deferimento das medidas protetivas requeridas, de modo a garantir a vinculação do autuado a eventual futura ação penal, bem como garantir as integridades física e psíquica da requerente neste momento em que, pelo que parece, o relacionamento entre os dois encontra-se com certa animosidade”, finalizou.

Na fotografia colorida, a mulher aparece com a cabeça abaixada e a mão na testa

A campanha Mulher, Você não Está Só foi criada para atendimento, acolhimento e proteção às mulheres em situação de violência que pode ter sido consequência, ou simplesmente agravada, pelo isolamento resultante da pandemia. Basta ligar para 61 994-150-635Hugo Barreto/Metrópoles

Na fotografia em preto e branco a boca da mulher está tampada com uma fita

Outras agressões

Metrópoles apurou que esta não foi a primeira vez que o militar agrediu a vítima. Em outra ocasião, o major a teria empurrado de um carro em movimento e apontado uma arma para a cabeça dela.

Em abril de 2022, a vítima registrou o primeiro boletim de ocorrência contra o policial. No entanto, por ser impedida por ele de trabalhar, a mulher passou a depender financeiramente do PM. O fato de não conseguir sustentar a si mesma e aos filhos, portanto, a impediu de quebrar o ciclo de violência.

O suspeito, inclusive, segundo o boletim, “obrigava a esposa a entregar a ele o dinheiro da pensão do primogênito dela” e ameaçava deixar de “ajudá-la caso ela o denunciasse”.

Certa vez, Eduardo agrediu o enteado e, na ocasião, o pai da criança registrou ocorrência contra o militar. Após isso, a mulher teria rompido a relação e ido morar com a mãe. Contudo, conforme o relato, o major passou a procurá-la com frequência e os dois acabaram reatando.

À época, de acordo com o documento, o militar teria obrigado a esposa a gravar um vídeo informando que as acusações feitas por ela eram falsas, solicitando a revogação das medidas protetivas que tinha e pedindo o arquivamento do processo que corria na Justiça.

O que diz a PMDF

Procurada, a corporação disse, em nota, que “o acusado de violência doméstica foi conduzido à Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam). Após prestar depoimento, ele foi levado ao Batalhão Prisional e foi colocado em liberdade na Audiência de Custódia com as medidas necessárias”.

Ao ser indagada sobre os procedimentos adotados, porém, a PMDF não esclareceu o que seriam “as medidas necessárias”. Contudo, garantiu que a Corregedoria abriu investigação para apurar as ações do militar.

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