Desde 2018, nenhum imunizante infantil do PNI atingiu a meta de cobertura
Desde 2018, nenhum dos 15 imunizantes que fazem parte da caderneta infantil do Programa Nacional de Imunização (PNI) atingiu a meta de cobertura estabelecida pelo Ministério da Saúde. Atualmente, todos os índices estão abaixo dos 70%
Um dos primeiros desafios de Nísia Trindade Lima quando assumir o cargo de ministra da saúde do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será a melhoria do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio do fortalecimento do Programa Nacional de Imunização (PNI). Na gestão de Jair Bolsonaro (PL), o programa, criado há 50 anos e considerado um marco histórico na saúde pública brasileira — por ter sistematizado as ações de vacinação em todo o território nacional — sofreu reveses, sobretudo com a força que ganhou o discurso antivacina. Uma das missões da ministra, logo em janeiro, será anunciar metas para o programa — que hoje está com todos os índices abaixo de 70% — retomar o fôlego.
Desde 2018, nenhuma das 15 vacinas que fazem parte da caderneta infantil do PNI atingiu a meta de imunização, de acordo com Francieli Fontana, coordenadora-geral do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde. Este ano, a poucos dias para encerrar a campanha contra a Poliomielite e Multivacinação para Atualização da Caderneta de Vacinação da Criança e do Adolescente menor de 15 anos de idade, o ministério decidiu prorrogar o prazo até o final do mês de setembro. A decisão foi tomada pois faltava muito para atingir os 95% de imunizados, conforme estabelecido pela pasta.
Em dois de setembro, a cobertura vacinal para poliomielite alcançava irrisórios 32,5%. Após o encerramento, as taxas para o insumo que afasta a paralisia infantil foi de 57,05% para a vacina aplicada nos primeiros meses de vida; 52,19% para a dose que deve ser tomada com 15 meses; e 53,27% para a dose administrada aos 4 anos de idade.
Há cinco anos, o PNI atingiu 99,72% de cobertura para a vacina BCG, que combate a tuberculose, e 91,33% para o imunizante contra o rotavírus humano, que evita infecções responsáveis por diarreias graves em bebês. Em 2020 a curva decresceu de forma alarmante. A taxa de imunização para o BCG, a primeira a ser tomada no início da vida, chegou a 63,88%. Já a vacina contra o rotavírus, despencou para 68,46%. Hoje a porcentagem é de 67% e 57,23%, respectivamente.
“Tem uma frase que é internacional e que a gente aqui no Brasil fala: vacinas causam adultos. Esse é um dos principais fatores que possibilitaram o aumento da nossa expectativa de vida em 30 anos. A gente conseguiu aumentar de 40 para 70, 80 anos com a vacinação. Vacinando as crianças damos a elas a chance de viver, de se tornarem adultos”, afirmou a médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Doenças erradicadas
Um dos prejuízos da baixa cobertura vacinal é o risco da volta de doenças já erradicadas no país. Os índices são baixos até mesmo em gestantes que devem obter a DTP e a DTPa gestante, que devem ser administradas com um intervalo de quatro semanas para combater o vírus causador da difteria, tétano e coqueluche. Neste ano, a soma das duas chegou a pouco mais de 52% (DTPa gestante foi de 36,03% e DTP Acelular do Tipo Adulto para gestantes foi 15,36%).
“Corremos o risco, obviamente, da reintrodução de doenças que já foram eliminadas, aumento de casos de doenças já controladas, como sarampo, poliomielite, coqueluche e difteria”, alertou Renato Kfouri, pediatra e diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Na quarta-feira (21), o ministro da Saúde Marcelo Queiroga afirmou que “estamos próximos de receber novamente o certificado de livre de sarampo”. No entanto, infectologistas ressaltam que as adesões à vacina contra o sarampo continuam baixas. Em 2019, após um ano de circulação do vírus do mesmo genótipo e aparecimento de novos surtos, o país perdeu a referida certificação.
No mesmo ano houve a confirmação de 20.901 casos da doença, em 2020 foram 8.448 e em 2021 outros 676 casos de sarampo. A primeira dose da vacina tríplice viral, que deve ser aplicada em menores de um ano, está com o índice em 62,26%. Quando se observa a segunda dose, que deve ser tomada a partir dos 15 meses de vida, a porcentagem é de 42,21%.
“O Brasil está no quinto ano de retorno do sarampo. Deixou de ser considerado um país de surto de sarampo e passou a ser considerado endêmico ao sarampo”, ressalta Ballalai.
Covid-19
Os baixos índices de vacinação não foram o único problema enfrentado pelo PNI nos últimos anos. A pandemia de covid-19 fez com que técnicos em saúde pública corressem contra o tempo para a fabricação de uma vacina de combate. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi uma parceira-chave para a celeridade no processo.
“As vacinas, todas elas, são sempre as melhores estratégias de saúde pública, por meio delas que os custos de tratamento são menores. Então, a gente persegue no nosso trabalho ampliar a vacinação por todos os aspectos. Nós enfrentamos esse debate com muita qualificação técnica. O foco era salvar vidas, pois era uma doença desconhecida”, explicou Meiruze Freitas.
Porém, houve uma perda de controle na vacinação da covid-19, principalmente em relação à faixa etária infantil. Um dos problemas mais graves, apontados em relatório recente do Tribunal de Contas da União (TCU), foram os “apagões” de dados do PNI.
A população que corresponde a bebês de seis meses e crianças de dois anos é de seis milhões, mas não existem informações sobre a imunização para essa faixa etária. Segundo o Grupo Técnico (GT) de Saúde, nas idades entre três a quatro anos, as porcentagens entre primeira e segunda doses estão abaixo de 20%. A maior taxa é entre cinco a 11 anos, a primeira dose registrou 70,7% e a segunda 50,1%. Cenário oposto aos altos índices entre os adultos.
Os coordenadores do GT apontaram que o ministério não sabe dizer quantas vacinas foram distribuídas ou o prazo de validade das doses, que podem vencer em janeiro. Na contramão dos dados, Queiroga afirmou que o Brasil se saiu muito bem no enfrentamento da pandemia de covid-19.
Guerra contra campanhas de fake news
Em paralelo à desarticulação do PNI, entidades especializadas em saúde pública e técnicos da área travaram uma guerra, nos últimos anos, contra as fake news. Discursos antivacina, direcionados especialmente à vacinação do público infantil, ganharam força com o estímulo de autoridades do governo. Espalharam dúvidas sobre a autorização da nova vacina de covid-19, mas também sobre os imunizantes que combatem doenças já erradicadas.
“A degradação da autoridade sanitária nacional e do papel de coordenação e articulação do Ministério da Saúde (MS) foram fatores chave na desestruturação de políticas e programas até então bem-sucedidos, como o Programa Nacional de Imunizações (PNI)”, indica relatório final da transição para a área.
Estudo qualitativo sobre os fatores que levam à redução de coberturas vacinais em crianças menores de 5 anos, conduzida pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em cinco capitais brasileiras, aponta que a baixa percepção de risco das doenças, fake news e dificuldade de acessar os serviços de vacinação são elementos importantes para afastar as pessoas dos imunizantes. Isabella Ballalai ressalta que isso piora quando as pessoas não enxergam o risco, principalmente nas doenças que já foram eliminadas.
“As pessoas não têm a percepção de risco, elas não acreditam e nem são informadas pelas autoridades públicas. Eu ouço de muita gente: porque o ministério nunca mais fez campanha de vacinação? E eu respondo: não é verdade, ele faz todo ano, só são campanhas ocultas. As pessoas precisam temer a doença para ter uma ação de busca da vacina”, esclarece.
Para Meiruze Freitas, diretora da Anvisa, a primeira providência a ser tomada para aproximar a população deve ser a retomada da transparência. Junto a isso, a técnica acredita que o PNI deve se reinventar. Nísia Trindade adiantou que o PNI será um departamento próprio dentro da pasta e que passará a ser “um esforço nacional, que vai passar pela Saúde, pelas escolas, pela área de Desenvolvimento Social”.
“A nova ministra fala que tem que fazer uma campanha intensiva nas escolas, nas creches, junto com os pais para sensibilizar. Ficamos anos e anos sem uma campanha de vacinação. Eu acho que combater as fake news e lançar campanhas mesmo fortes do governo, do Ministério da saúde, o famoso Zé Gotinha e mostrar que a vacina protege sim, que criança pode ter quadros graves de covid. Isso é o primeiro passo”, ressaltou Christovam Barcellos, pesquisador titular do Laboratório de Informação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Outro mecanismo de contenção estudado pelos membros do GT de saúde da transição é passar a mapear os conteudistas e influenciadores de fake news para enquadrá-los em crimes contra a saúde pública.