MP denuncia médico acusado de causar morte de bebê: “Parto assustador”
Bebê morreu após horas de sofrimento, segundo familiares. O obstetra Shakespeare Novaes se tornou réu na Justiça por homicídio culposo
Um médico do Distrito Federal foi denunciado pelo Ministério Público e virou réu na Justiça pela morte de um bebê após o parto, em um hospital particular de Brasília. Os pais da criança registraram boletim de ocorrência na Polícia Civil do DF (PCDF) contra o obstetra Shakespeare Novaes Cavalcante de Melo por erro médico. Segundo a família, a criança teria sofrido um trauma na cabeça após o especialista inserir uma ferramenta conhecida como vácuo extrator, para tentar retirá-la do útero da mãe.
A PCDF enviou o inquérito para o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), que denunciou Shakespeare à Justiça do DF. O Metrópoles apurou que ao menos outras duas famílias denunciaram o mesmo médico por procedimentos semelhantes, que quase custaram a vida de seus filhos.
“Minha esposa estava com 39 semanas de gravidez quando procuramos a emergência do hospital. Lá, fomos atendidos por uma médica de plantão. Ela indicou uma cesariana, mas logo foi embora. Cerca de 1h30 depois, o doutor Shakespeare, que nos acompanhou durante o pré-natal, chegou. Ignorando a indicação da primeira médica, ele já foi informando a utilização da bomba de ocitocina, certas posições e o vácuo extrator. De repente, vimos uma gestação tranquila sumir em um parto de puro horror”, disse o pai do bebê, cuja identidade será resguardada.
Segundo o homem, que assegura ter acompanhado todo o procedimento, inclusive fazendo registros com fotos e vídeos, as tentativas de o médico induzir o parto com o vácuo extrator foram “assustadoras”. “O instrumento fazia um barulho extremamente forte. Ele ficou tentando retirar o meu filho dessa forma, mas não conseguiu. Como consequência, o bebê, em vez de descer, subiu para o abdômen da minha esposa, momento em que ele decidiu pela cesariana, sem conversar direito conosco”, relembra o brasiliense.
Veja o que é o vácuo extrator:
Para o pai, o processo foi “assustador”. “Eu olhava no rosto da equipe e os percebia fazendo sinal negativo, como se algo estivesse errado. Inclusive, a enfermeira realizou uma manobra de Kristeller, considerada violência obstétrica e, logo em seguida, pediu desculpas, dizendo que ‘no calor da emoção todo mundo comete o erro’. Eu estava tão focado na minha esposa e no meu filho que não consegui reagir”, disse o pai, emocionado.
De acordo com o homem, quando, finalmente, retiraram o bebê da barriga da mãe, a criança estava “roxa” e com o “pescoço mole”, momento em que correram com ele para o pediatra, pois o recém-nascido estava em parada cardíaca.
“O médico o reanimou, mas ele estava com respiração ruidosa, curta e dolorosa. Era nítido que meu bebê estava sofrendo. Na cabeça dele tinha um machucado compatível com a ferramenta utilizada pelo médico, mas na hora todos diziam que ele estava bem, mas cansado e, por isso, ficaria na UTI para ter conforto respiratório. De repente, falaram em intubá-lo, e eu fiquei desesperado”, declarou.
Após 13h de sofrimento, lutas e uma série de paradas cardiorrespiratórias, segundo o homem, a criança morreu. Nesse momento, o médico teria informado aos pais que o bebê nasceu com problema cardíaco e não resistiu.
Insistentes, os familiares contam que apenas depois de muita exigência conseguiu o direito de fazer a necropsia. Por fim, o laudo indicou que o bebê “tinha órgãos saudáveis, contudo, dispunha de um sangramento subgaleal na região occipital da cabeça, a qual tinha um volume considerável de sangue”.
“Nós só saímos do hospital depois de recebermos todos os prontuários. Quando abrimos o documento, vimos que o médico tinha, de fato, errado. Ele matou meu filho. Isso para nós foi um horror, porque eu estava em um hospital particular, e mesmo assim não fomos assistidos. Então, juntamos todas as provas e registramos um boletim de ocorrência”, contou o pai.
O inquérito apresentado pela 3ª Delegacia de Polícia (Cruzeiro) ao MPDFT foi aceito pela Justiça no fim de outubro de 2022, um ano após o parto. Agora, segundo o processo, o médico responderá por homicídio culposo.
“Para nós, foi uma vitória. Apesar de sabermos que o nosso filho não voltará, essa é uma esperança de que nenhuma outra família enfrentará o que enfrentamos, pois a dor que sentimos, eu não desejo a ninguém” finalizou o pai, que também processa o médico por falsidade ideológica devido a uma suposta alteração dos dados registrados no partograma.
“Não sou conivente”
À reportagem uma profissional da área da saúde, que já trabalhou ao lado do médico, disse que presenciou alguns partos nos quais o obstetra estava atendendo várias gestantes ao mesmo tempo. Por isso, segundo ela, muitas grávidas chegavam a esperar horas para terem seus filhos.
“Partos que acompanhei cujo médico era o Shakespeare tiveram algo em comum: diversas grávidas sendo acompanhadas por ele e a demora do doutor em atendê-las. Em um dos casos, a mãe deu entrada cedinho no hospital e foi internada por horas esperando por ele. Após nascer, o bebê estava mole. Não posso afirmar se foi pela demora, mas percebi esse padrão em todos os partos realizados por ele, o que passou a me assustar”, disse a profissional, que também não será identificada nesta reportagem.
De acordo com a mulher, em outra ocasião, uma gestante foi avaliada no plantão da maternidade pelo médico e ele teria dito “que estava tudo muito favorável”, mas o parto não tinha iniciado ainda.
Por isso, o especialista indicou a aplicação de ocitocina, com o auxílio de uma bomba de infusão, mas, em seguida, retirou a bomba e passou a fazer “puxos dirigidos”. “Durante esse processo, eu não me recordo dele auscultar o bebê. O indicado é fazer isso a cada 15 minutos. Então, sim, foi uma falha”, explicou.
“Após a saída da criança, via parto normal, fezes do recém-nascido aparecem em seguida, o que pode ser um indicativo de sofrimento fetal. Como consequência, o bebê precisou ser reanimado e foi levado pra UTI para um protocolo de hipotermia. Depois, o diagnóstico da pediatria apontava asfixia, ou seja, houve sofrimento, e aquilo poderia resultar em trauma cerebral ou algo pior”, declarou a profissional.
“Desde então, eu optei por nunca mais atender com esse médico. Eu entendi que trabalhar ao lado dele seria ser conivente com a negligência com a qual ele atua. Então, penso que em algum momento eu poderia presenciar a morte de algum bebê ou mãe. Portanto, me nego a acompanhar casos em que ele seja o médico obstetra”, finalizou.
Aliás, a Lei nº 12.895/2013 informa que é dever dos hospitais e instituições de todo o território nacional manterem, em local visível, aviso informando sobre o direito da parturiente a ter consigo um acompanhante, direito esse que deve ser respeitado sem qualquer ressalva ou condiçãoKatherine Cho Photography/ Getty Images
A Lei Federal n° 11.108, ou Lei do Acompanhante, foi sancionada em 2005 e, desde então, assegura à gestante o direito à presença de um acompanhante durante o trabalho de parto, o parto e o pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), da rede própria ou conveniadaOscar Wong/ Getty Images
O dispositivo garante, ainda, que a parturiente escolha a pessoa que acompanhará o nascimento do bebê, independentemente do grau de parentesco. Além disso, caso não queira optar por ter acompanhante na sala de parto, também é um direito da mulherMarko Geber/ Getty Images
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A lei é válida tanto para parto normal quanto cesárea, e a presença do acompanhante, inclusive se for adolescente, não pode ser impedida pelo hospital ou por qualquer membro da equipe de saúdeJose Luis Pelaez Inc/ Getty Images
Durante o início da pandemia da Covid-19, contudo, algumas instituições começaram a contrariar a regra, sob o argumento de que o direito proporcionava o aumento do contágio pelo vírusErlon Silva – TRI Digital/ Getty Images
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Na ocasião, o Ministério da Saúde expressou, na Nota Técnica 9/2020, que “o acompanhante, desde que assintomático e fora dos grupos de risco para Covid-19 deve ser permitido” ao lado da grávida. A Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, também expressou a importância e necessidade de as parturientes terem os direitos asseguradosJupiterimages/ Getty Images
Mesmo assim, com todos os órgãos superiores de saúde recomendando que os hospitais seguissem o protocolo de permissão de acompanhantes durante o parto, várias judicializações por descumprimento da regra foram registradas em todo paísWavebreak/ Getty Images
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É importante ressaltar que a Lei Federal n° 11.108 é um direito assegurado à grávida, e, diante do sucateamento do benefício, denúncias podem ser realizadas por quem se sentir lesado. A ANS, a Anvisa e os Ministérios Públicos, por exemplo, aceitam denúncias on-line em seus sitesHRAUN/ Getty Images
Aliás, a Lei nº 12.895/2013 informa que é dever dos hospitais e instituições de todo o território nacional manterem, em local visível, aviso informando sobre o direito da parturiente a ter consigo um acompanhante, direito esse que deve ser respeitado sem qualquer ressalva ou condiçãoKatherine Cho Photography/ Getty Images
A Lei Federal n° 11.108, ou Lei do Acompanhante, foi sancionada em 2005 e, desde então, assegura à gestante o direito à presença de um acompanhante durante o trabalho de parto, o parto e o pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), da rede própria ou conveniadaOscar Wong/ Getty Images
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“Não o indico a nenhuma grávida”
Acompanhada pelo doutor Shakespeare Novaes, uma mulher, cuja identidade será resguardada, relatou momentos de horror durante o parto do primeiro filho. Segundo ela, no dia em que o bebê resolveu nascer, o obstetra estava atendendo outras gestantes e, para que pudesse retornar ao consultório, o especialista optou por recorrer a medicamentos que induzissem o nascimento da criança.
“Eu lembro da enfermeira ficar perplexa pelo fato da ocitocina estar jorrando direto na veia, sem a bomba para controlar quantidade. Lembro também da dor absurda que eu estava sentindo por conta do medicamento. O médico mal falava comigo, pois estava com outras pacientes. De repente, veio com uma conversa de ter uma agenda para cumprir, de eu já estar com 8 cm de dilatação e que, por isso, iríamos para a sala de parto”, detalhou a mulher.
No local, segundo ela, e depois de quase 12h, um outro médico, supostamente amigo do obstetra, a tocou e estourou a bolsa amniótica. Nesse meio tempo, ela conta que ninguém da equipe parou para verificar como o bebê estava.
“Eu estava cansada e sentindo uma dor enlouquecedora. Depois de muita luta, meu filho nasceu quase sem vida. Ele precisou ser reanimado, intubado, e encaminhado para protocolo de hipotermia. No total, meu bebê ficou três dias resfriado para preservar o cérebro, cinco dias de intubação e 12 dias de UTI”, contou a mãe.
De acordo com ela, a criança sofreu asfixia e, por um “milagre”, não teve sequelas. “Os médicos diziam que ele teria paralisia cerebral ou outros problemas de saúde, mas, graças a Deus, meu filho hoje não tem nenhuma sequela do sofrimento que enfrentou”, declarou
“Eu demorei muito para aceitar tudo. Hoje, eu vejo que essa quase fatalidade foi por má conduta do doutor. Por irresponsabilidade. O que passamos na mão dele foi pura negligência. Não o indico a nenhuma grávida que está prestes a ter bebê”, completou.
Diferente do destino da criança desta última mãe, a família de um outro bebê, que sofreu graves sequelas durante o parto, hoje também move processo contra o médico no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT).
Na peça, os pais de um bebê apontam que, devido a ações do obstetra, a vítima teve sofrimento fetal, que provocou encefalopatia hipóxico-isquêmica, causada por tratamento inadequado do hipotireoidismo materno e ausência de monitoramento da vitalidade fetal durante o parto.
Defesa
O Metrópoles contatou o doutor Shakespeare Novaes que, por nota, se pronunciou, dizendo lamentar “profundamente o caso de óbito noticiado na presente matéria, oportunidade em que reitero a minha mais sincera solidariedade aos familiares envolvidos”. Em sua defesa, o obstetra disse que sempre pautou o “trabalho como médico obstetra com base na aplicação de técnicas e métodos amplamente reconhecidos no meio científico, os quais aplico desde minha formação em medicina há mais de 20 anos, sem que tenha respondido por qualquer processo neste período”.
“Devido às restrições quanto ao sigilo médico, expostas perante o Código de Ética Médica, por meio de seu Artigo 73, parágrafo único, ressalto que todos os fatos que verdadeiramente ocorreram durante minha condução dos partos noticiados serão devidamente esclarecidos perante a Justiça, os quais poderão ser comprovados por meio de perícia e outras provas que se fizerem necessárias”, escreveu.
O médico continua sua defensa dizendo que “os casos judicializados ainda se encontram em fase inicial, sequer tendo sido realizada perícia imparcial que tenha constatado qualquer tipo de falha de minha parte”.
Ao final da nota, Shakespeare diz que nutre o mais profundo respeito pelos pacientes envolvidos e que segue confiante que será comprovada a sua inocência. “Não agi, em qualquer momento, com negligência, imprudência ou imperícia, me mantendo ainda à disposição para prestar os esclarecimentos às partes e autoridades envolvidas”, finalizou.