Cortes na saúde podem afetar fornecimento de medicação para HIV
Redução do orçamento para a saúde pode prejudicar fornecimento de remédios para inibir o vírus do HIV no material genético. No início do mês, Saúde mudou regras de distribuição
Alterações na dinâmica do tratamento de HIV/Aids para pacientes no Sistema Único de Saúde (SUS) tem preocupado a população que recebe os serviços e os remédios gratuitamente. No início do mês, o Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde divulgou uma circular avisando que a Lamivudina 150mg — medicamento usado diariamente por soropositivos para inibir o vírus do HIV no seu material genético — teria a sua aquisição modificada de “forma excepcional e temporária”, de 90 para 30 dias, até que a situação do estoque seja regularizada.
A justificativa da pasta foi a necessidade de regularizar os estoques da Lamivudina 150mg, já que houve um crescimento da demanda e os laboratórios fornecedores não estão conseguindo suprir a demanda. “A datar de setembro de 2021 a prescrição dos esquemas “simplificados” está autorizada sem avaliação da câmara técnica assessora no manejo de antirretrovirais. Notou-se um crescimento rápido do uso desses esquemas, acima do que foi previsto na implementação dessa estratégia. Laboratórios fabricantes estão com dificuldade para atender o aumento da demanda nos prazos de entrega requeridos”, explicaram.
Maria Clara Gianna, médica sanitarista do Centro de Referência e Treinamento de DST/Aids e da coordenação do programa estadual de IST/Aids de São Paulo, que atua há 34 anos com o tema, informa que a Lamivudina teve uma maior procura por conta da associação dessa substância com outros medicamentos no tratamento, o que provocou a falta em diversos estados.
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“Continuamos tendo os principais medicamentos recomendados e precisamos incorporar cada vez mais. Porém, se falta medicamento, isso é um recado ruim que estamos dando para o país”, destacou a especialista.
A questão é que, apesar de o Brasil ter os principais fármacos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o combate ao vírus do HIV, falhas em programas direcionados para o tema podem levar pessoas soropositivas a vivenciarem a realidade do final dos anos 1980 e início dos 1990.
Claudiney Alves, aposentado e militante do acesso de soropositivos ao tratamento, tem 52 anos de idade e há 32 convive com a Aids. Enquanto tentava chegar ao estado de tornar o vírus indetectável, ele ficou por três meses sem o medicamento que deveria tomar diariamente. “Foi preocupante. Foi um período em que eu estava batalhando para ficar indetectável, por isso minha carga viral voltou a aumentar e eu fiquei suscetível a adquirir doenças oportunistas”, contou.
O ativista está há 18 anos indetectável, por isso consegue viver uma vida sem estigma. “Imagina um paciente como eu, que em um dia ou dois pode mudar o estado clínico de indetectável para o desenvolvimento da Aids — que é diferente de conviver com o HIV. Se observar o percentual de pessoas que vivem com o vírus, a maioria tem adesão [ao tratamento], isso que faz ter vida longa. A falta do medicamento aumenta tanto o estigma de quem tem medo de adoecer, quanto de ir a óbito”, explica.
Cortes no orçamento
O cenário de falta de medicamentos tem sido visto com apreensão porque pode ser um sinal das consequências que virão com os cortes feitos pelo governo federal na Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2023 (LDO). Nas despesas para a saúde pública o arrefecimento chegou a 60%, de acordo com o Boletim de Monitoramento do Orçamento da Saúde, que tem sido produzido pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e a associação filantrópica Umane.
O jornal O Estado de São Paulo mostrou que a decisão atingiu 12 programas da pasta. A distribuição de medicamentos para tratamento de HIV/Aids, infecções sexualmente transmissíveis e hepatites virais teve a tomada de R$ 407 milhões. O boletim alerta que caso não haja uma reversão nessa decisão, ela irá impactar diretamente as políticas públicas e “poderá gerar agravos à ações fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS)”.
As principais consequências apontadas por Gianna são a menor aquisição de medicamentos, de insumos para laboratório e prevenção, além de diminuição do diagnóstico precoce.